A HERANÇA DOS EXCLUÍDOS


“A sociedade prepara o crime; o criminoso apenas o pratica.”
                                                       Henry Thomas Buckle

Você já olhou nos olhos de um ladrão?

Ao sair do trabalho no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro, voltei para casa, um pouco mais tarde que o habitual, por volta das nove e quarenta da noite. Naquela noite estava decidido a não chegar em casa sem antes dar uma boa caminhada pelo calçadão. Eu morava em Copacabana, no famoso “Duzentão” da Barata Ribeiro, edifício conhecido pelos estupros que aconteceram nos elevadores e corredores do imenso prédio sem lei. Apesar de morar em Copacabana, quase não ia à praia, mas naquele dia precisava dar ao menos uma boa olhada no mar e sentir a suavidade das pequenas ondas quebrando na beira da praia. Caminhei alguns metros pelo calçadão e, ao passar pelo suntuoso Copacabana Palace, avistei uma viatura com dois policiais na frente do prédio, fazendo a ronda noturna, o que me deu mais segurança para caminhar por mais alguns metros, pois não havia ninguém no calçadão e, é conhecido de todos, é muito perigoso caminhar por ali naquele horário. Alguns passos adiante, me deparo com um menino aparentando oito ou nove anos de idade, de pele escura como a noite, uma magreza esquelética e vestindo uma camiseta suja e rasgada que chegava a cobrir os seus joelhos. A fragilidade daquela criança não me parecia apresentar perigo algum. Logo, continuei caminhando, deixando que ele se aproximasse. Quando estava a pouco mais de dois metros do menino, ele sacou, por debaixo da camiseta, uma arma tão grande que me surpreendera ele conseguir sustentá-la com uma única mão. No mesmo instante, dois jovens, que se encontravam deitados na areia da praia, sob a penumbra da noite, saltaram como dois gatos em cima de sua presa, impedindo que eu me esquivasse. O menino, de tão pequeno, apertou a arma contra a minha barriga – era o máximo que ele podia alcançar – enquanto os dois jovens tiravam todos os meus pertences. Ao atestar que não havia mais nada para levar, os jovens correram na direção da praia, se protegendo na escuridão da noite. O menino disse para que eu me ajoelhasse ou ele puxaria o gatilho – em momento algum duvidei que ele poderia fazer isso. Ao me ajoelhar, pude então olhar nos seus olhos e me surpreendi ao ver naqueles olhinhos tristes um misto de dor, sofrimento e medo, muito medo. O menino não conseguiu olhar nos meus olhos e disse, em tom de ameaça, para que eu abaixasse a cabeça e olhasse para o chão. Abaixei o semblante e, ele, como um ratinho fujão, desapareceu na penumbra da noite. Olhei para traz e vi que os policiais não apenas viram todo o acontecido, mas riam da minha situação. Fui até os dois homens e perguntei porque não haviam feito nada. Eles me disseram que não era de sua alçada, pois não tinham permissão para fazer abordagens depois das vinte e duas horas. Naquele momento entendi o que eles estavam fazendo ali, e senti até uma certa compaixão pelos três bandidinhos que me deixaram apenas com a roupa do corpo, mas haviam sido, no mínimo, mais sinceros e corajosos. Fui até a delegacia registrar a ocorrência pois, além de levarem minha mochila com algumas roupas e equipamentos eletrônicos, levaram minha carteira com todos os meus documentos.

No dia seguinte, ao chegar no trabalho, contei para o meu sócio o ocorrido. Ele, depois de soltar uma boa gargalhada e me dar aquele caloroso tapa nas costas, me disse que “agora eu já poderia me considerar um legítimo carioca!”. Passada a raiva que toda perda origina, vez ou outra me lembrava daquele ratinho triste e me indagava: “Será que ainda lhe resta uma única ponta de esperança, ou ele já teve o mesmo destino dos tantos meninos que trocam os carrinhos de lata de óleo, com rodinhas de havaianas por metralhadoras de última geração?”

A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante liberdade, igualdade e justiça para todos. Ao que me parece, isso não pode ser assim. Como em nossa sociedade alguém tem sempre que perder, logo, que sejam eles – os excluídos – pois já não tinham nada mesmo! “Talvez nem sintam falta desses direitos”. Mas quem, em sua sã consciência, renunciaria direitos essenciais para a própria vida?

Entre os nobres representantes da nossa elite econômica, grande parte, ou toda ela, seria totalmente capaz de compreender e aceitar as declarações da carta de 1948. Mas não seriam eles capazes de entender que aquele menino negro, sujo, que dorme na imundície das calçadas, pertence à mesma espécie que aquele bebezinho saudável e cor-de-rosa que as mães levam para passear no Shopping Center todos os dias à tarde, no banco de trás do seu carro novo?

Aqueles homens e mulheres que superlotam os presídios e cadeias de todo o país também são humanos, assim como você e eu. Ao passar próximo a um presídio, não deixe de se perguntar qual o verdadeiro motivo daquelas pessoas estarem ali. Assim como a guerra é um mecanismo eficaz para evitar a superpopulação, os presídios também servem para tirar das ruas uma boa parcela dos revoltados que não se “enquadraram” em nosso modelo sócio-econômico. Pergunte a um jovem que acabara de se aliciar no crime organizado, no tráfico de drogas, quais os motivos que o levaram até ali. Você descobrirá que a revolta está entre os principais motivos.

Onde há injustiça há sempre muita revolta, muito ódio, muita dor. Onde há injustiça, há sempre um desejo de vingança. Essa vingança é uma arma que dispara, inevitavelmente, na direção dos inocentes. E quem é o verdadeiro culpado? Aquele que segurava a arma? Um menino de nove anos de idade? Você teria coragem de afirmar isso? Eu não teria!

Warcelon Duque